sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

A ler

A ler (e reflectir sobre) o artigo de opinião da Meritíssima Juíz Ana Bacelar:

"Um homem revelava-se desesperado.
Fora agricultor e tinha perdido tudo, numa terra seca por muitos anos sem chuva. Estava só, pois a sua mulher e filhos tinham partido. Evivia numa cabana quase a cair, nada tendo sequer para comer.

Em mais uma manhã, o homem saiu da cabana e sentou-se no chão, encostando-se ao tronco morto de uma árvore. Quase de imediato lhe surgiu um duende. Do nada, ali mesmo à sua frente.
O espanto do homem foi enorme com o aparecimento dessa pequena figura mágica e com o que ela tinha para lhe dizer - era-lhe concedido um desejo para realizar.
O que desejasse seria concretizado. Fosse o que fosse, mas apenas um desejo e com uma condição. Aquilo que desejasse ser-lhe-ia concedido a si e em dobro ao seu vizinho mais próximo. O duende voltaria no dia seguinte, exactamente pela mesma hora em que aparecera da primeira vez, para que o desejo do homem fosse formulado e imediatamente realizado. E o duende desapareceu.

Depois do espanto, o homem sentiu medo. Duvidava do que lhe fora proposto, porque duvidava de si próprio. O seu desespero podia ter-lhe toldado o espírito e a razão. Mas nada tendo, nem para perder, o homem não levou muito tempo a abandonar o medo e a entusiasmar-se.
As coisas pequenas que começou por desejar foram tomando volume. Uma bela seara, pensou. Que lhe desse grande rendimento. Teria trabalho e alimento. E teria, então, condições para reorganizar a sua vida. Mas enquanto imaginava semelhante seara lembrou-se do vizinho, com quem estava muito zangado e há muito tempo. O vizinho teria uma seara duas vezes maior. Sem qualquer esforço. Nem pensar, concluiu.

Mas não querendo perder a oportunidade, o homem levou o seu pensamento para a cidade. Deixaria de viver naquele lugarejo e desejaria um grande comércio, instalado numa bela loja. Venderia de tudo um pouco e ficaria finalmente rico. Só que o vizinho teria uma loja duas vezes melhor e venderia duas vezes mais coisas. Seria duas vezes mais rico. Não o podia permitir. Nem pensar, concluiu novamente. Uma companheira, desejou então. Bonita, muito bonita. E o vizinho... teria duas mulheres tão bonitas como a sua ou uma mulher duas vezes mais bonita que a sua. Nem pensar, concluiu mais uma vez.

O dia e a noite correram, sem que o homem conseguisse dormir. Foi formulando desejos de que desistia sempre porque não queria sequer imaginar que o seu vizinho iria ter o dobro do que lhe seria a si concedido. Que injustiça. O duende era seu e a sorte era sua. E o vizinho a aproveitar-se tudo isso. Não, não o permitiria nunca.

A manhã chegou e o homem estava esgotado pela briga solitária que travara. E chegou também a hora do duende, que apareceu conforme havia prometido e disse ao homem que deveria formular o seu desejo. O homem não hesitou. Pediu ao duende que lhe arrancasse um olho."

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