domingo, 4 de fevereiro de 2007

A ler III

A ler o texto desta semana de Vital Moreira no Público, disponível no Aba da Causa:

"Mas o que há de notavelmente novo no actual referendo é a estratégia confusionista adoptada pelas forças opostas à despenalização, com o evidente propósito de lançar a maior barafunda possível sobre o que está em causa no referendo. São dois os principais instrumentos: primeiro, argumentar que a pergunta do referendo não é clara nem honesta, pois ela fala em despenalização, quando quer dizer liberalização; segundo, argumentar que, para resolver o problema penal do aborto, basta deixar de punir as mulheres que o efectuam, tendo-se multiplicado ultimamente declarações nesse sentido. (...)
A pergunta do actual referendo é a mesma de 1998, tendo passado duas vezes no escrutínio do Tribunal Constitucional, que tem por missão verificar também se as perguntas submetidas a consulta popular são claras e não enviesadas. Como é que os partidários do status quo só descobriram agora que a pergunta é "capciosa"? A verdade é que a pergunta é mais do que clara. Quando se fala em "despenalização" de certa conduta, tanto no discurso leigo como na linguagem jurídico-penal, o que se pretende é retirá-la do âmbito do direito penal e do Código Penal, ou seja, da esfera dos crimes e das respectivas penas. (...)
Descontando os casos de puro e rasteiro oportunismo, a principal ilação a retirar dessas posições é a de que muitos adversários da despenalização se deram conta de que a punição penal das mulheres que não desejam prosseguir uma gravidez indesejada já não é politicamente nem humanamente defensável e que, afinal, a defesa da vida intra-uterina tem de ser conciliada com os direitos e interesses legítimos das mulheres. Mas continuam agarrados ao dogma fundamentalista de que o aborto em si mesmo deve continuar a ser um crime. (...)
Uma comparação com os discursos de há uma década, mostra que enquanto o discurso despenalizador (a favor do "sim"), apesar de politicamente mais plural, se mantém firme e consistente na defesa da despenalização do aborto até às dez semanas, independentemente do juízo individual de cada um sobre a sua censura moral ou religiosa (o que é totalmente legítimo) e sobre a necessidade de o combater, já o discurso adversário se tornou uma cacofonia desafinada e contraditória, onde a única coisa que resta é a compulsão para instrumentalizar o direito penal e a repressão criminal do Estado ao serviço de uma cruzada religiosa ou moral de uma parte da sociedade. Quando os adeptos do "não" à despenalização propriamente dita se sentem tentados a defender (ou a fingir) que também são a favor de uma qualquer "despenalização", então já abandonaram a protecção absoluta do "direito à vida do feto" e só lhes resta impor aos demais, de forma intolerante, os seus próprios códigos morais e religiosos (por mais legítimos que estes sejam)."

2 comentários:

Ricardo Sardo disse...

José Raposo, no "Dolo Eventual":

"Quando surgiram variadíssimos movimentos a recolher assinaturas pelo 'Não', lançou-se a dúvida sobre a existência de três vezes mais movimentos do que pelo lado do 'Sim'. Nessa altura muita gente referiu a estratégia que aparentemente existia para o 'Não' ter o maior número de oportunidades nos tempos de antena, o que até parecia fazer sentido numa ideia que haveria diversas associações e movimentos a querer participar na campanha. Mas não deixava claro que na realidade apenas existe um movimento, o “Não, Obrigada” encabeçado pelos do costume remetendo todos os outros movimentos para um papel secundários de peões.
Assim é nos tempos de antena. Todos os tempos de antena estão identificados com o movimento que supostamente tem sobre ele “propriedade” no início, mas depois as imagens, os jingles, os slogans e o movimento são do Não Obrigada, que imaginou os tempo de antena como uma espécie de programa em episódios para não maçar os espectadores.
A estratégia parece ter resultado, mas o que deve ficar claro para os portugueses, é que foram enganados por um hábil número de senhores e senhoras bem na vida, com acesso a algum dinheiro e que desta forma pretendem perpetuar uma hipocrisia fazendo passar a ideia que são aos milhares os movimentos que votam 'Não'."

Ricardo Sardo disse...

Vital Moreira, no Causa Nossa:

"É oficial. Numa operação concertada, a frente comum dos movimentos do "não" e os dirigentes políticos com eles alinhados (incluindo Marques Mendes) vieram lançar uma grande manobra de mistificação do referendo, afirmado-se agora também a favor da "despenalização" do aborto. Ou seja, votar contra a despenalização seria, afinal, votar na despenalização!?
O aborto continuaria a ser crime, previsto e punido no Código Penal, como hoje. Só que, defendem agora, não haveria punição.
O que não dizem é o seguinte:
a) Como compatibilizar essa "despenalização" com o resultado do referendo, se o "não" vencesse (pois o que está em causa é mesmo a despenalização)?
b) Como explicar a ideia de um crime sem punição?
c) Como impedir as mulheres de "abusarem" do aborto (como dizem pretender), se deixar de haver a ameaça de punição?
d) Como justificar a manutenção do aborto na clandestinidade (pois ele continua a ser crime), se acham agora que ele não deve ser punido?

A manobra de mistificação de última hora dos opositores ds despenalização do aborto revela duas coisas:
(i) que eles já não a acreditam na repressão penal como meio de impedir o aborto;
(ii) que eles estão disponíveis para trocar a "defesa da vida", com que até agora tinham enchido o seu discurso, por uma operação do mais cínico oportunismo.
Na iminência de perderem o referendo, estão dispostos a tudo, desde que salvem o seu sectarismo moral. Coerência e escrúpulos, eis o que não abunda na hostes do "não"."