segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Rescaldo ao Referendo

1. Resultados

Relativamente a 1998, o número de votantes no "não" foi semelhante, enquanto o dos votantes no "sim" aumentou cerca de 1 milhão de votos. Tal pode significar que desta vez o eleitorado do "sim" mobilizou-se mais. Com menos 12% de abstenção (68% em 1998 e 56% ontem), este referendo teve, portanto, uma maior participação. Uma das causas apontadas é a campanha mais esclarecedora e a posição (e intervenção) do PS, em especial do Primeiro-Ministro.
Apesar de não vinculativo, o referendo teve desta vez uma maior mobilização do eleitorado. Desta forma, parece-me inadequada e despropositada a posição de alguns defensores do "não", que alegam que o referendo, não sendo vinculativo, não legitima uma mudança da lei. Primeiro porque, apesar de não ser vinculativo, teve uma maior participação e o resultado foi claro (58% contra 42%). Em segundo lugar, porque a vinculação só opera pela positiva, isto é, apenas quando houver 50% mais um voto é que este se torna vinculativo. Sendo o referendo vinculativo, a lei terá que respeitar o voto maioritário, seja num sentido ou no outro. Se não for vinculativo, a lei pode ir quer num sentido, quer noutro.
Quanto aos números, é de salientar a "divisão" entre Norte e Sul. Enquanto o Norte (e as Ilhas) é maioritariamente contra a despenalização, o Sul foi claramente a favor (sobretudo no Alentejo e Algarve). Dá que pensar.

2. Discursos

Os discursos foram os esperados.
O que criou mais expectativas foi o de Sócrates, em que toda a gente esperava mais pormenores sobre a regulamentação da lei. Apesar de não ir mais longe, como todos queriam, afirmou que a lei irá "beber" as melhores práticas europeias, nomeadamente (talvez este seja o ponto mais relevante e importante) o chamado "período de reflexão" até 3 dias.
É de aplaudir, pois só uma lei moderada terá apoio (pelo menos tácito) do PSD, evitando que no futuro uma maioria da "Direita" leve a uma revogação da lei que irá agora ser criada (o CDS-PP declarou ainda ontem pretender revogá-la).
Lamentável o discurso de Ribeiro e Castro que afirmou, passadas poucas horas de o povo português se ter pronunciado, que irá, "logo que seja Governo", revogar a nova lei. Por outras palavras, não irá respeitar a maioria, ignorando a vontade popular.
De elogiar os discursos das representantes da "Plataforma Não Obrigada" e do "Movimento Responsabilidade e Cidadania".

3. Pontos positivos e negativos

De positivo, sem dúvida, a maior participação, apesar de não ter atingido metade dos eleitores (alguns afirmaram que se os cadernos eleitorais fossem "limpos" provavelmente atingir-se-ia a metade).
De negativo, a forma como alguns reagiram aos resultados:
- a reacção de Ribeiro e Castro, já supra explicado
- a reacção de um militante do "não", tirando o som à tv quando Sócrates discursava, nostrando intolerância e desrespeito pela posição contrária (tendo criado, aliás, algum burburinho na sala pelo desagrado de alguns que pretendiam ouvir o Primeiro-Ministro)
- um post num blog do "não" ("Venceu a cultura da morte! 11 de Setembro, 11 de Março, 11 de Fevereiro. Datas manchadas pela morte!") e o clima de "ajuste de contas" na blogosfera. Profundamente lamentável...

4. Vencedores e vencidos

Vencedores:
- José Sócrates, pela intervenção activa na campanha e pelo discurso virado para o futuro, para a forma como a lei será regulada
- Todos aqueles que lutaram contra a contra-informação, a manipulação (de argumentos, de números e estatísticas), tentando esclarecer o eleitorado
- Gato Fedorento. A última grande arma do "não" era a entrada em cena de Marcelo Rebelo de Sousa, com o seu vídeo "assim não", defendendo a despenalização em vez da liberalização que, segundo ele, iria a referendo. Em 2 minutos de vídeo, num sketch humorístico, os Gato Fedorento desmontaram o argumento do Professor, mostraram a fragilidade do argumento, "virando o feitiço contra o feiticeiro", provocando os efeitos contrários aos pretendidos

Vencidos:
- Todos aqueles que tentaram espalhar a confusão, a dúvida, manipular o eleitorado com argumentos falsos (desde as questões médicas às questões legais, jurídicas) e impor a sua "moral" aos outros, através de uma campanha totalmente lamentável (desde o uso de crianças na campanha, os panfletos pertubardores, os dvd's e as "cartas" com uma linguagem inaceitável em democracia) e o CDS-PP, que já afirmou pretender revogar a futura lei, indo contra a vontade da maioria popular. Em democracia a vontade da maioria deve ser respeitada. Em suma, a intolerância mostrada, a incompreensão, o radicalismo a convicção de superioridade moral ("os que votaram "sim" necessitam de ser esclarecidos" foi uma das reacções mais repetidas)
- O "argumento" de que os que não foram votar transmitiram uma suposta vontade de manter a presente lei, fazendo lembrar o "argumento" de Salazar de que os que não foram votar no então plebiscito à Constituição eram a favor.
- Marcelo Rebelo de Sousa (pelas mesmas razões que levaram os Gato Fedorento a serem vencedores)

6 comentários:

Ricardo Sardo disse...

CAA, no "Blasfémias":

"Uma certa direita partidária portuguesa perdeu. Não apenas o referendo, muito mais do que isso. Os discursos foram desconexos. As propostas de última hora tresandaram a trapaça eleitoral. Conseguiram desmotivar muitos "nãozistas" que acreditavam (e acreditam) que esta era uma batalha por valores. Não foram sérios. Credíveis. Nem sequer convenceram a maior parte do seu eleitorado tradicionalmente fiel. Com a sua atitude na última semana de campanha, pareciam apostados em fazer de todos os outros estúpidos - sobretudo as pessoas que queriam votar "Não". O Portugal urbano e jovem rejeitou-os. Veremos se aprenderam alguma coisa com isso. Eu não acredito..."

Ricardo Sardo disse...

"é bom fazer o que parece básico e legal: cumprir a Constituição e não aceitar uma mudança da lei com um referendo que não vincula ninguém."


"Quem é que vai explicar que se altera a lei, apesar dos resultados da abstenção, impondo a todos o que a própria Constituição não permite e nega com toda a clareza."


"o PM, o Governo e a maioria deverão ser os primeiros a respeitar a nossa lei fundamental, e mal estaremos, em todos os casos, se assim não acontecer. É certo que eles prometeram mexer na lei, mesmo sem a maioria vinculativa, mas é um princípio de pensamento totalitário e de extraordinária falta de respeito pelos portugueses. Felizmente ainda existe um Presidente da República e um Tribunal Constitucional, que terão uma palavra final, e decisiva, sobre essa matéria"


Estas pérolas são de Luis Delgado, num artigo de opinião no Diário de Notícias. Como diz Vital Moreira no Causa Nossa, é o "nonsense" habitual de Luis Delgado...
Fico ansioso pela (eventual) "resposta" do Tribunal Consitucional, para ver se Luis Delgado leva uma lição de Direito, já que não é jurista... Tenho a certeza que engole logo estas palavras.

Ricardo Sardo disse...

Afinal, ainda há pior que Luis Delgado...

"Luís Filipe Menezes considerou hoje que os resultados do referendo sobre o aborto foram «uma enorme derrota» para José Sócrates e «um cartão amarelo» à sua governação.
Somando o «enorme absentismo» aos votos no «não», o autarca de Gaia e ex-opositor de Marques Mendes na disputa pela liderança do PSD considerou que «uma iniciativa política do primeiro-ministro é reprovada por cerca de 80% dos portugueses»." (Diário Digital)


Será que tomou alguma coisa? (ou esqueceu-se de tomar...)
Já que ontem não houve Gato Fedorento, acho bem que Menezes tente compensar a falha humorística da noite de ontem.

Ricardo Sardo disse...

Rui Tavares, no 5 Dias:

"No Blogue do Não, no artigo de Luís Delgado no DN, na reacção de Luís Filipe Menezes, nas respostas do CDS e do “Não” (mas, vá lá, o PSD e Marques Mendes evitaram esse caminho) aparece timidamente um tema: o de que se juntarmos os abstencionistas ao voto do “Não”, há uma maioria de pessoa que se opõe à despenalização do aborto. A ideia é tão hilariamente absurda e desajeitada que está para lá de qualquer comentário. Mas os cenários ainda vão mais longe: Luís Filipe Menezes e Pedro Picoito contam com aqueles que não poderão nunca vir a votar, porque não nascerão: os fetos… Bagão Félix poderia até aduzir que se trata do voto do nascituro não concebido, que garantiria naturalmente a vitória do “Não”. E porquê parar por aí? Não viriam esses fetos a ter filhos (eleitores do “Não”, pois claro)? E os netos dos fetos?"

Ricardo Sardo disse...

Pedro Correia, no Corta-Fitas:

"Já tinha jurado a mim próprio não ouvir aqueles programas matinais da rádio e da televisão em que o "povo" vomita o que quer em antena. Abri hoje uma excepção, durante alguns minutos. Era na SIC Notícias, falava-se do referendo e uma senhora dizia isto: "A maior parte das pessoas idosas que votaram 'não', sobretudo as senhoras, tenho a certeza absoluta que fizeram muitos abortos."
Fiquei-me por aqui. Foi quanto bastou para avaliar o nível intelectual da coisa."

Ricardo Sardo disse...

Vicente Jorge Silva, no Diário de Notícias:

"A abstenção eleitoral é um cancro da democracia"