Deve ser pontaria, quando tenho menos tempo para
blogar surge algum tema que merece análise profunda e desenvolvida. Agora é com as providências cautelares...
Já ontem se discutiu,
na Sic, este mecanismo legal, onde o Juíz Rui Rangel e Miguel Sousa Tavares se pronunciaram sobre a já polémica providência cautelar ao jornal Sol. Mas tenho lido já alguns textos e ouvido algumas notícias que confundem ainda mais as pessoas que não percebem de Direito e se baseiam em pressupostos errados ou não confirmados. Vejamos.
a) As providências cautelares dividem-se em duas espécies: especificadas e não especificadas (comuns). Nas primeiras, tipificadas na Lei, temos, por exemplo, o Arresto ou o Embargo de Obra Nova. Nas outras, temos todas as outras que, não estando especificadas, sirvam para proteger um direito ou prevenir um dano irreparável.
"ARTIGO 381.º
(Âmbito das providências cautelares não especificadas)
1. Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
2. O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor.
(...)
ARTIGO 382.º
(Urgência do procedimento cautelar)
1. Os procedimentos cautelares revestem sempre carácter urgente, precedendo os respectivos actos qualquer outro serviço judicial não urgente.
(...)
ARTIGO 383.º
(Relação entre o procedimento cautelar e a acção principal)
1. O procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva.
(...)
ARTIGO 384.º
(Processamento)
1. Com a petição, oferecerá o requerente prova sumária do direito ameaçado e justificará o receio da lesão.
2. É sempre admissível a fixação, nos termos da lei civil, da sanção pecuniária compulsória que se mostre adequada a assegurar a efectividade da providência decretada.
(...)
ARTIGO 385.º
(Contraditório do requerido)
1. O tribunal ouvirá o requerido, excepto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.
(...)"
c) Da leitura das normas acima transcritas, concluímos o seguinte:
- O procedimento tem carácter urgente, com o objectivo de garantir o seu efeito em tempo útil;
- Visando impedir a consumação de uma lesão ou um dano, irreperável, terá necessariamente de produzir efeitos e ter que ser analisada em tempo útil, antes, portanto, da consumação do acto danoso;
- A decisão deve ser tomada depois de ponderadas as consequências da providência e o juíz avalia sempre os contras e os eventuais prejuízos do seu decretamento;
- Pode ser decretada sem ouvir primeiro o visado, quando a sua audição (que implicará tomar conhecimento da providência) possa colocar em causa a eficácia da providência e, consequentemente, precipitar a consumação do dano ou da lesão;
- O requerente terá, sempre, que provar, na chamada "acção principal", a existência do direito que alega ter e o prejuízo, dano ou lesão que diz sofrer com a publicação das conversas escutadas. Se o tribunal não lhe der razão, estas poderão ser publicadas.
d) A providência cautelar terá sido requerida por um administrador da PT, supostamente "apanhado" em escutas telefónicas no processo Face Oculta e, segundo o que tem sido veiculado pelos media, a providência visa impedir o jornal de publicar mais escutas em que esteja "envolvido".
Em primeiro lugar, urge esclarecer dois aspectos: 1) Partindo do pressuposto que esta informação é verdadeira, então a providência visa apenas impedir a publicação de determinadas escutas (as que envolvam o requerente) e não outras. Significa isto, pois, que outras escutas poderão ser publicadas, desde que não sejam aquelas. Nem, pela mesma razão, impede que o jornal Sol seja colocado à venda, como, aliás, acabou por ser. Deste modo não se compreende uma certa vitimização que se propagou em alguns jornalistas e/ou bloggers que já falavam em proibir o jornal de ir para as bancas e de condená-lo à asfixia financeira. Certamente, o jornal não tem só aquela notícia nem apenas aquelas escutas; 2) Já hoje se tem falado em incumprimento, por parte do Jornal Sol, da providência, ao publicar a informação. Ora, ainda não li a reportagem completa do semanário, mas parece que
há dúvidas sobre a informação constante. Ou seja, poderá haver incumprimento apenas no caso de o jornal ter publicado novas escutas que envolvam o requerente da providência. Se apenas volta às mesmas escutas já publicadas a semana passada, então não há incumprimento.
e) Já muitas pessoas, alguma com cargos relevantes (por exemplo, deputados e jornalistas), levantaram dúvidas sobre a decisão judicial. Para além de questionarem a justeza da decisão, que decretou a providência, levantaram suspeições sobre o (a) magistrado (a) da 11ª Vara Cível de Lisboa.
Vicente Jorge Silva, entre outros, suspeita da celeridade com que foi decretada a providência. Ora, acontece que VJS, por quem tenho enorme consideração, desconhece o regime deste instrumento legal e o seu carácter urgente. Tendo sido, na semana passada, publicadas escutas e tendo sido dada entrada de uma providência cautelar para impedir nova publicaão hoje (ontem, já que o jornal foi para as gráficas ontem), o tribunal teria que decidir em tempo útil, ou seja, até ao dia de ontem, sob pena de inutilidade superveniente (pelo menos parcial, pois poderia sempre impedir ainda mais publicações para a próxima semana, pois já se percebeu que o Sol vai publicar a informação às pinguinhas, como a TVI fez com o dvd no caso Freeport).
É, pois, preciso ponderação nas palavras e prudência e serenidade nos comentários. Levantar falsas (ou infundadas) suspeitas sobre o poder judicial é minar a confiança dos portugueses da Justiça e colocar em causa a Ordem e o Estado de Direito. É abrir uma caixa de pandora, cujas consequências serão sempre nefastas e altamente perigosas.
f) Por último, um comentário sobre a dúvida se o jornal foi ou não notificado. Segundo se sabe, o solicitador foi retido na recepção das instalações do semanário, não tendo entregue a notificação a ninguém, nem aos directores, nao ao Sol (enquanto pessoa colectiva). Na nota editorial, o jornal diz que tomou conhecimento de que iria ser notificado pela comunicação social, mas recusou-se a receber a notificação. Ou seja, fugiu à Justiça, quando sabia que ia ser notificado. Fiquei na dúvida (nenhum órgão de comunicação social soube explicar, pelo menos que eu saiba) se terá havido ou não citação edital (a citação é afixada nas instalações, por exemplo na porta).
Sobre esta aspecto, faço minhas as palavras de
Eduardo Maia Costa, Juiz Conselheiro do STJ: "
a reacção do "Sol" foi bem mesquinha, bem à portuguesa: fugir à notificação é como procedem geralmente os que têm medo de assumir as consequências dos seus actos. Incapaz de assumir uma atitude frontal de desobediência civil, em nome da ética jornalística e do superior interesse público, o procedimento do "Sol" é mesquinho, é rasca."
Termino com uma nota: não irei, porque acho que não devemos fazê-lo fora da sede própria (tribunais), analisar a providência, se é justa ou não, se tem fundamentos ou não. Apenas direi que, provavelmente - e sem querer emitir qualquer juízo de valor -, terá sido aceite com base nos seguintes argumentos: i) possível manipulação das escutas e falsidade da informação publicada; ii) a informação foi obtida com violação do segredo de justiça (por meio ilegal, portanto); iii) a publicação de mais escutas provocará mais danos na imagem e na honra do requerente (criando um libelo que nunca desaparecerá). Provavelmente, terá sido ainda decretada sem audição prévia do jornal por receio de, sabendo este da providência, publicar a informação online e consumar o dano.
Não quero, com isto, dizer que concordo ou discordo da decisão, mas apenas que poderão ter sido estes os argumentos utilizados (como aliás, já foi especulado por alguns media) e os fundamentos do tribunal.