"Na noite de passagem de ano, quase nunca há táxis em Lisboa. Às cinco da manhã, junto ao Lux, não havia táxis. A Maria, vamos fazer de conta que é esse o nome dela, saiu do Lux a essa hora. Como mora perto do Cais do Sodré, resolveu ir a pé para casa. Não lhe passou pela cabeça que podia correr perigo, só que ia ser uma chatice de um estirão, quando os pés já lhe doíam de dançar e só sonhava com a cama. Quando estava a 300 metros do destino, um grupo de três rapazes de vinte anos apareceu-lhe à frente. O primeiro mandou-lhe a mão ao rabo, o segundo imitou-o. O terceiro encostou-a à parede e passou-lhe revista. A Maria gritou, empurrou, debateu-se, deu pontapés, mas não conseguiu rechaçá-lo. (...)
Suspeitava aliás de que, se fosse à polícia queixar-se de ter sido apalpada na rua por três marmanjos, ainda acabaria a sentir-se gozada ou a ter de responder a perguntas do tipo ‘Então e o que estava a senhora a fazer na rua a esta hora, sozinha?’ ou ‘Não acha que é muito perigoso uma senhora tão atraente andar assim vestida por aí, a estas horas? Não acha que até teve muita sorte de não lhe ter acontecido pior?’
É também possível que os polícias lhe confessassem não saber se os rapazes teriam cometido algum crime. Bem vistas as coisas, mexer no corpo de outra pessoa sem o consentimento da mesma, avaliar-lhe a consistência dos seios ou das nádegas ou do sexo não está descrito em nenhuma tipologia de crime do Código Penal – a não ser que a pessoa a quem isso seja feito seja menor e o perpetrador seja maior, caso em que será considerado abuso sexual. Mas quando ambos são maiores, pois que nada, no capítulo dos crimes contra a liberdade e auto-determinação sexual, penaliza especificamente aquilo que foi feito à Maria.
Suspeitava aliás de que, se fosse à polícia queixar-se de ter sido apalpada na rua por três marmanjos, ainda acabaria a sentir-se gozada ou a ter de responder a perguntas do tipo ‘Então e o que estava a senhora a fazer na rua a esta hora, sozinha?’ ou ‘Não acha que é muito perigoso uma senhora tão atraente andar assim vestida por aí, a estas horas? Não acha que até teve muita sorte de não lhe ter acontecido pior?’
É também possível que os polícias lhe confessassem não saber se os rapazes teriam cometido algum crime. Bem vistas as coisas, mexer no corpo de outra pessoa sem o consentimento da mesma, avaliar-lhe a consistência dos seios ou das nádegas ou do sexo não está descrito em nenhuma tipologia de crime do Código Penal – a não ser que a pessoa a quem isso seja feito seja menor e o perpetrador seja maior, caso em que será considerado abuso sexual. Mas quando ambos são maiores, pois que nada, no capítulo dos crimes contra a liberdade e auto-determinação sexual, penaliza especificamente aquilo que foi feito à Maria.
Já se, em vez de a apalparem de alto a baixo, os rapazes tivessem por exemplo baixado as calças e exibido o falo, cometeriam um crime, o de “actos exibicionistas” (“Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista”), previsto no número 171º como prevendo uma pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias. Mas como lhe mexeram e só usaram as mãos, não é necessariamente crime. (...)
Terá sido a ponderação destas questões que levou a Unidade de Missão para a Reforma do Código Penal a propor que o artigo 171º passe a intitular-se “importunação sexual” e preveja pena até um ano para quem “importunar outra pessoa praticando perante ela actos de natureza exibicionista ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual”. (...)"
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