"(...) Uma primeira observação, que não deixa de ter um sentido, por assim dizer, sintomático, é a de que, bem vistas as coisas, além de certos políticos, por razões eleitoralistas, apenas uma “classe” se posta clara e substancialmente a favor da incriminação do enriquecimento ilícito em termos de serem violados certos princípios constitucionais: a daqueles ligados à investigação criminal (com excepções honrosas, é claro). A razão é óbvia: uma inversão do ónus da prova, em matéria penal, retira muito trabalho a quem investiga: na exacta proporção daquele que é colocado sobre os ombros da defesa. É este o encanto, a magia, de uma tal incriminação. Neste particular, demagogia e preguiça andam de mãos dadas. (...)
Com isto não se menoscaba apenas o princípio da presunção da inocência. Se bem que este seja o ponto mais referido na discussão a que se tem assistido, crimes daquela natureza também desconsideram outros aspectos essenciais da gramática penal, como é o caso do princípio da culpa, também ele com dignidade constitucional se se admitir que flúi da dignidade da pessoa (artigo 1.º da CR). Este último aspecto, aponta, assim, para um Direito penal de base deontológica e avesso a uma configuração que atenda apenas ou maioritariamente a aspectos utilitaristas. Os proponentes de tal incriminação deviam pois, revisitar a distinção dworkiniana entre políticas e princípios: uma política, em si mesmo legítima e até desejável, que pretenda, pelo combate à corrupção e criminalidade afim, alcançar uma maior transparência democrática não pode deixar de ser limitada por princípios de justiça e equidade, de entre os quais se deve considerar, com proeminência, o princípio da presunção da inocência e o princípio da culpa. Só não é assim, claro está, quando princípios e políticas se confundem, quando aqueles se funcionalizam a estas à boa maneira utilitarista de modo a assegurar a máxima felicidade para o maior número (leia-se, o maior número de condenações, ainda que meramente “formais”). O transe da obtenção de resultados não pode, pois, deixar de se alcançar à custa dos princípios (ou, como de modo feliz e bem mais plástico se disse num postal abaixo: a culpa há-de “casar à força)”. E não é mais do que isto o que se pretende com o crime do enriquecimento ilícito."
(Dr. Pedro Soares de Albergaria, via Câmara Corporativa)
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