"(...) Diversamente do que sugere o nome proposto, nenhum dos projectos incrimina o enriquecimento ilícito (i. e., de proveniência ilícita), mas sim o enriquecimento cuja origem se ignora. Com efeito, só pode falar-se de enriquecimento ilícito quando se conhece a respectiva fonte (corrupção, tráfico de influência, etc.), e, nesses casos, a nova incriminação mostra-se evidentemente desnecessária. É por isso que não se exige a prova de que o património tem origem ilícita (pois isso implicaria a prova do crime que os gerou): na ideia da maioria parlamentar, bastará que o património não resulte de meios de aquisição lícita, assim se procurando abranger os casos em que, pura e simplesmente, se desconhece a origem do património incongruente com os rendimentos declarados. (...)
Nenhum dos projectos aponta de forma clara e concreta, na respectiva exposição de motivos, o bem jurídico ofendido por este crime. A razão é simples: ele não existe. Quando alguém possui um património incongruente com os rendimentos declarados, uma de três: ou tem rendimentos lícitos que não estava obrigado a declarar, e a sua situação é legal; ou não declarou, como devia, todos os seus rendimentos lícitos, e cometeu uma infracção fiscal; ou o excedente patrimonial provém da prática de um crime (p. ex., de corrupção), e, sendo um efeito desse crime passado, não é, por definição, um perigo para o bem jurídico que com ele se tenha ofendido. (...)
Um perigo traduz-se no risco qualificado de um evento desvalioso futuro, e por isso se presume, em certas condições, que dada actividade é perigosa (p. ex., conduzir com determinada taxa de alcoolemia), antecipando-se para esse momento a tutela do bem jurídico. Ora, a norma aprovada faz exactamente o contrário, pois refere o "perigo" a um evento passado (o cometimento dos crimes geradores de rendimentos), querendo protrair a tutela do bem jurídico para depois da sua lesão - desiderato que é incompatível com o direito penal de um Estado de direito liberal.
Na verdade, o que esta norma pretende é exigir indícios de que o património foi adquirido, no passado, através de crimes cometidos no exercício de funções. Sucede que os indícios de um crime servem para investigar e provar esse crime (v. g., de corrupção), não para compor, como factos (!), o tipo legal de um outro crime. Não existe norma penal alguma onde se lance mão de tal malabarismo. E assim se revela, com candura, o fim último da criminalização do enriquecimento ilícito: havendo indícios de que certo agente cometeu um crime de corrupção, a intervenção penal deixa de depender da prova da corrupção - basta provar que o património é manifestamente superior aos rendimentos declarados. (...)
No plano da eficácia, existe uma forte probabilidade de a incriminação do enriquecimento "ilícito" prejudicar a repressão da corrupção e crimes análogos, porque envia um péssimo sinal às autoridades judiciárias e policiais. A investigação - difícil, trabalhosa e de êxito incerto - dos crimes de corrupção (que ameaçam, eles sim, o Estado de direito) cederá o passo à muito mais simples e proveitosa investigação (?) do enriquecimento: bastará proceder periodicamente, no remanso de um gabinete, a uma comparação entre as declarações de IRS e o património ostentado por certos agentes.
Além disso, se os tribunais levarem a sério, como se espera, as formulações propostas, dificilmente haverá condenações, pois todas exigem a prova de que o património excedente não resulta de meios lícitos. No caso mais comum, o arguido, confrontado com a incongruência do seu património, exercerá o direito ao silêncio. Ora, perante a simples desproporção entre as aquisições efectuadas e os rendimentos declarados, e ignorando-se a respectiva origem, é não só possível, como muito provável, que um juiz consciencioso decida: "não se provou que o património incongruente não resulta de meios lícitos", absolvendo - correctamente - o arguido com fundamento no princípio in dubio pro reo. Mesmo que se mantenha a já criticada exigência constante do projecto do PSD, que credibilidade merecem os indícios de um crime de corrupção que o próprio Ministério Público entendeu não serem sequer suficientes para a promoção do respectivo procedimento penal?
Além disso, se os tribunais levarem a sério, como se espera, as formulações propostas, dificilmente haverá condenações, pois todas exigem a prova de que o património excedente não resulta de meios lícitos. No caso mais comum, o arguido, confrontado com a incongruência do seu património, exercerá o direito ao silêncio. Ora, perante a simples desproporção entre as aquisições efectuadas e os rendimentos declarados, e ignorando-se a respectiva origem, é não só possível, como muito provável, que um juiz consciencioso decida: "não se provou que o património incongruente não resulta de meios lícitos", absolvendo - correctamente - o arguido com fundamento no princípio in dubio pro reo. Mesmo que se mantenha a já criticada exigência constante do projecto do PSD, que credibilidade merecem os indícios de um crime de corrupção que o próprio Ministério Público entendeu não serem sequer suficientes para a promoção do respectivo procedimento penal?
Com as absolvições que se adivinham, entrecortadas, aqui e ali, pela condenação de dois ou três bodes expiatórios, lá virá depois o cortejo habitual - muitas vezes formado pelos mesmos que aplaudem estas leis - a queixar-se da (in)justiça, de as leis serem feitas para os "criminosos", etc. (...)"
E termina com uma frase que subscrevo: "Uma norma que preveja um crime de enriquecimento "ilícito" com uma estrutura deste género será ilegítima, fortemente selectiva, provavelmente ineficaz e em nada contribuirá para a credibilização da justiça."
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