sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Impeachment em Portugal

Há dias e por causa de mais um triste episódio do nosso presidente, foi avançada a hipótese de "demissão" de Cavaco Silva, um impeachment ao titular do cargo. E como o prometido é o devido e apesar de já ter avançado a conclusão, segue a minha posição sobre esta possibilidade.
Ao contrário de outros sistemas políticos, como o inglês, o irlandês, o brasileiro e sobretudo o norte-americano, em Portugal esta figura - demissão do presidente por outro órgão de soberania - não está prevista, nem na Lei nem na própria Constituição (CRP), fonte legal que seria a mais apropriada para acolher esta matéria, desde logo pela sua importância. Trata-se, a meu ver, de um lapso do legislador e, mais concretamente, da Assembleia Constituinte que tratou, após o 25 de Abril de 1974, de elaborar uma nova Constituição, mais democrática e mais ajustada ao novo ciclo político que tinha emergido da Revolução. E creio tratar-se de um lapso pois a ausência de um mecanismo de sindicância ao presidente vai contra o espírito da Constituição. O legislador pretendeu, desde logo, distribuir o poder e equilibrar as forças políticas, em que umas fiscalizam (ou controlam) as outras - o chamado sistema de "checks and balances", tendo, por isso, tido como ponto de partida a Declaração Universal dos Direitos do Homem e aplicado o regime político idealizado por Montesquieu. O artigo 111º da CRP estabelece precisamente este equilíbrio de forças. E se é verdade que o nosso sistema atribui poucos poderes ao presidente não é menos verdade que esta ausência de poder é compensada pela ausência de mecanismos de fiscalização do único órgão de soberania unipessoal, o que potencia situações insustentáveis e inaceitáveis. Como aqui avançei, alguém imagina, por exemplo, um presidente louco que desata a matar gente sem poder ser destituído? Pelos vistos, há quem imagine e afirme, de forma convicta e juridicamente precipitada, que não seria possível afastar o titular do cargo...

Chegados aqui, é altura de analisar as normas constitucionais que regem a figura do presidente (artigos 120º a 146º), especificamente quanto à possibilidade de renúncia - seja voluntária (art.º 131º) ou imposta (art.ºs 129º e 130º). E é aqui que se manifesta o lapso do legislador. Desde logo, porque não prevê mecanismo concretos de destituição nos casos consagrados nos dois artigos em questão, referindo apenas que, num caso, perde o cargo e, no outro, implica a destituição e impossibilidade de reeleição. Voltando ao caso que dei em cima: aplicar-se-ia o artigo 130º, pois estaria em causa a prática de um crime no exercício de funções, pelo que a Assembleia da República decidiria se havia ou não motivo para processo e, em caso afirmativo, remeteria-o para o Supremo, para este julgar e decidir. Mas se não sair voluntariamente ou recusar-se, por exemplo, a agendar nova eleição para o cargo (porque é seu poder marcar eleições)? Imaginemos que seria condenado e que, mesmo assim, o presidente recusaria abandonar o cargo? A CRP não prevê esta hipótese...

Tirando estes dois casos (ausência do país sem autorizção prévia do parlamento e prática de um crime), existem outros que, nos países que preveem o impeachment, daria azo a um processo de destituição. Desde logo a possibilidade de o titular do cargo padecer de uma doença grave que limite ou perturbe, de forma insanável, a acção do presidente. Estou a pensar, por exemplo, no alzheimer. Imaginemos que se tornava óbvio, para todos, que o presidente não tinha condições para exercer o cargo, graças a uma doença (ainda incurável) que o leva, da mesma forma, a não ter consciência da sua própria situação clínica e, consequentemente, o leva a não se demitir (por, por exemplo, não reconhecer que tem a doença). A CRP também não prevê esta hipótese.

Ou seja, a Constituição não prevê determinados casos que, a verificarem-se, serão de difícil resolução. Trata-se, repito, de um lapso, de uma omissão da nossa lei fundamental, que, apesar de não prever tudo, deveria prever este tipo de situações.

Ora, é precisamente por causa destes hipotéticos casos que defendo que se pode destituir o presidente. O problema terá de ser resolvido, de uma maneira ou de outra, pelo que teremos de nos socorrer, desde logo, do espírito do legislador, dos princípios fundamentais do nosso sistema político e de uma reforçada dose de bom senso. Resta analisar a forma do procedimento de destituição.

No primeiro caso previsto na CRP, trata-se de uma violação de um dever para a Assembleia da República (AR) e no segundo o processo crime correrá termos no Supremo após indicação da AR. Ou seja, estas duas normas sugerem que caso o legislador tivesse previsto o impeachment, seria a AR o órgão responsável pelo seu procedimento, ou pelo menos parte dele. Aliás, se formos a ver o procedimento levado a cabo nos sistemas que o preveem, o processo inicia-se no parlamento (nos que têm duas "casas" ou câmaras o processo passa por ambas) e é decidido, a final, pelo mais alto órgão jurisdicional. Nos EUA, por exemplo, é o Supremo que, juntamente com o Senado (composto por cem senadores), decide se destitui ou não o presidente, após a Câmara dos Representantes propor a sua destituição. E teremos que nos basear nestes sistemas como ponto de partida para o nosso "impeachment". Considero, pois, que, fora dos dois casos já previstos, é possível destituir o Presidente da República, desde que a AR assim o considere e com fundamento em violação dos deveres consagrados na CRP ou impossibilidade de exercer regularmente as suas funções. Caso a AR assim o promova, deve o procedimento seguir para o Tribunal Constitucional (TC), órgão responsável pela administração da justiça em matéria político-constitucional, conforme está previsto no art.º221º da CRP. Outro argumento a favor desta posição é que, tal como previsto no art.º 223º da CRP, compete ao TC pronunciar-se sobre questões semelhantes, que se prendem com o presidente da república, nomeadamente a perda do cargo no primeiro caso de destituição previsto. E tendo em consideração que estamos a falar, quanto aos fundamentos do impeachment, de questões constitucionais, como a violação dos deveres impostos pela CRP, fará para mim sentido que seja o TC a analisar tais matérias, em vez, por exemplo, do Supremo. Tanto que o TC é o garante último da Constituição.

Em forma de conclusão, considero que, apesar de não estar previsto na CRP - por lapso do legislador -, é possível destituir o Presidente da República fora dos casos previstos na CRP, mais concretamente quando se mostre evidente que tenha violado, de forma consciente e intencional, o deveres consagrados na CRP (e que jurou cumprir e fazer cumprir) ou não tenha condições para exercer adequada e regularmente as funções atribuídas pela CRP. O processo deve iniciar-se na AR, com por exemplo, uma decisão a favor do procedimento de maioria de dois terços, seguindo para o Tribunal Constitucional para "julgar" e decidir se existe matéria para exonerar o titular co cargo presidencial, ficando, desde logo, com o poder de marcar novas eleições. No caso - já previsto na CRP - da prática de um crime, será o Supremo a julgar e a decidir e em caso de condenação, envia a sentença para o TC decidir se destitui ou não. Penso que, a verificar-se uma situação destas, será esta a resolução mais justa, equilibrada e consensual, atendendo que estaremos a integrar uma lacuna. Se o problema não tem solução fácil, é certo que há algumas que são menos más do que outras. E também é certo que haverá quem discorde desta posição e até tenha uma que possa vir a mostrar-se melhor e mais adequada. Pelo menos fica a discussão lançada e afastada a precipitação de alguns que defenderam já não ser possível destituir o Presidente da República. É que se assim fosse, então poderíamos ter um louco por aí sem que nada lhe acontecesse enquanto permanecesse no cargo, o que manifestamente vai contra o espírito da Constituição que promoveu a distribuição e o equilíbrio dos poderes em vez de um poder absoluto e a intenção da Assembleia Constituinte que se reuniu após a Revolução para elaborar uma Constuição democrática, justa e equilibrada.


Adenda: em troca de e-mails com outro blogger, foi-me perguntado se era constitucionalista. A resposta é não, sou um mero jurista (advogado) que não deixa de ter uma opinião sobre este assunto e que estudou, obviamente, Direito Constitucional no primeiro ano do curso e andou a reler o manual do Prof. Jorge Miranda por estes dias em busca de respostas e argumentos.

1 comentário:

António Bernardo Colaço disse...

Caro colega,

Sou magistrado jubilado e em não tenha um estudo estruturado sobre a matéria, permita-me que o congratule por esta pedrada no charco, ou seja, chamando atenção para a lacuna de que padece a Constituição.
Também tenho um blog - normetica -. Não é regularmente subscrito, mas versa sobre questões de âmbito geral onde pontificam questões actuais com que o país e a humanidade em geral se debatem e naturalmente com os direitos humanos.
Um grande abraço António Bernardo Colaço