"Seria um vulgar caso de polícia, não fosse a frase e a circunstância.
Agentes de um Tribunal bateram à porta para concretizar uma penhora, de surpresa, como parece ser costume.
A porta abriu-se, os agentes entraram, explicaram ao que vinham e o casal que ali vivia tentou também explicar que o penhorado era outro, que ali já não morava, que era o inquilino anterior.
Mostraram até (...) quatro passaportes a comprovar que não existia qualquer ligação entre devedor e moradores: da mulher, do marido, do filho, até da amiga que ali vivia com eles.
Terá sido aí que (...) surgiu a frase, peremptória, na boca de um dos agentes em presença: "são todos brasileiros, por isso não há qualquer confusão. A ordem que temos é para levar as coisas..."
É extraordinária a capacidade dedutória dos nossos agentes.
Imagine-se que o casal não era de imigrantes, mas de portugueses de gema, jovens inquilinos acabados de mudar para uma casa que ficara vaga. O que diriam os ofícios? "São todos lisboetas, por isso não há qualquer confusão"? E se um deles puxasse do BI para provar que era de Braga? Como se comportariam os judiciais demandantes? Diriam que isso de geografias é coisa que pouco importa à Justiça? E levariam, a preceito, televisão, frigorífico e DVD? É pouco provável, mas não é de estranhar que as coisas se passem deste modo em certos espíritos.
O que conta não é a culpa, ou a ausência dela, mas a semelhança.
"Fui ontem assaltado por um preto!", "Fui enganada por uma brasileira!", "Fui vigarizado por um gajo lá do Leste!" E todos os negros, brasileiros e cidadãos do Leste passam a culpados.
Isso na óptica do racismo mais comum. Mas levada ao absurdo, esa lógica de catalogação por géneros podia até ser divertida se aplicada noutros meios e a outras patentes. Imagine-se um deputado acusado de delito grave. Vinha a polícia, de mandado em punho, até São Bento. Irrompia pelo hemiciclo, em obediência à lei. Só que o culpado estava ausente (...). Aí o agente diria, circunspecto: "São todos deputados, por isso não há qualquer confusão. A ordem que temos é para levar..." E lá faziam a respectiva razia do hemiciclo. (...)
E se a todo-poderosa Comunidade Europeia, segura nos seus poderes, descobrisse que determinado português a burlava criminosamente há vários anos? E se enviasse cá os seus polícias? E se eles pensassem como certos agentes de Tribunal? Diriam: "São todos portugueses, por isso não há qualquer confusão. A ordem que temos é para levar..."
E íamos todos, deixando para trás um imenso deserto de culpas."
Nuno Pacheco, in Público (27.2.2007)
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