sexta-feira, 1 de junho de 2007

Leituras

"Não devia ser preciso repetir banalidades. Por exemplo, sobre o facto de a justiça ser ministrada por homens vindos de uma sociedade que não tem só anjos.
Por exemplo, sobre a necessidade de acórdãos exemplares, baseados na lei, nos factos julgados, na jurisprudência disponível, na melhor doutrina, na técnica refinada de interpretação, explicitação e integração, na sentença, das normas aplicáveis.
Por exemplo, sobre a virtude de magistrados independentes, incorruptíveis, inamovíveis, inimpressionáveis, isto é, marmóreos, mas ao mesmo tempo actualizados, sensatos, realistas e comedidos, isto é, flexíveis.
Por exemplo, sobre a necessidade de não substituir o princípio de separação de poderes do Estado, uma das melhores garantias contra o abuso, e de não tender para uma espécie de solução "convencional" (da Convenção francesa de 1793), em que um único órgão poderia ser, ao mesmo tempo, executivo, legislativo, polícia, juiz e executor.
Não devia ser preciso repetir banalidades, mas às vezes é.
Sobretudo quando, perante as insuficiências reconhecidas do "sistema" judicial (que envolve muitos "operadores"), se tende para um raciocínio de inutilidade do mesmo, ou do seu controlo por um qualquer órgão "representativo". Daí à magistratura directamente votada, com campanha eleitoral, comícios e ameaças, ou promessas, vai um passo. Daí à solução oposta, de uma magistratura autista, blindada e opaca, vai outro. Podemos em parte estar a caricaturar soluções, por que o tempo é, infelizmente, de caricatura, excesso e desrazão.
Um dos pontos que se esquecem rapidamente, na actual pseudodiscussão sobre a "qualidade" dos tribunais, é o facto de o juiz não ser um legislador, nem sequer por defeito (por exemplo, legiferando nos baldios jurídicos, onde não há rei nem roque).
No actual regime político, no actual sistema de governo, na actual forma de estado, no actual modelo constitucional, o juiz está praticamente expropriado de interferência no processo legislativo (o que pode ser virtuoso), e de capacidade recomendativa, prospectiva, predicativa ou "pedagógica", quanto às leis futuras (o que pode ser injusto, e perverso).
Outra área é a da "expressão judicial".
Numa altura em que não há sectores de acção pública sem mediação comunicativa, a justiça precisa de saber traduzir as suas decisões, naquela linha fina que não compromete a complexidade do caso, nem deturpa o sentido, a razão e a consequência do julgamento.
Outro ponto é o do mau magistrado, ramo podre de uma árvore. Encontrar o bom podador é problema delicado, que não se resolve com o actual Conselho Superior da Magistratura (quanto a mim, uma péssima solução, para uma questão demasiado grave).
Por fim - e com a consciência de que nem começámos - é preciso reconhecer que o juiz não fica, em geral, aquém, nem além das convicções sociais "dominantes". Apenas as sistematiza e razoabiliza. Mas não pode ser culpado pelos pecados do meio."

(Nuno Rogeiro, in Jornal de Notícias)

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