terça-feira, 4 de novembro de 2008

Disciplina de voto vs. liberdade de voto

Prometi aqui que seria muito breve a analisar a questão da disciplina de voto dos partidos na Assembleia da República, mas só agora tenho essa possibilidade.

A questão foi suscitada por Manuel Alegre durante o debate e votação no Parlamento do projecto-lei d'Os Verdes sobre o casamento gay, tendo o deputado socialista votado em sentido contrário ao seu partido, desrespeitando a disciplina imposta pos este. Alegre alega que a Constituição garante-lhe o direito à liberdade de voto.
Analisemos então a questão:

1. Logo no primeiro artigo da Constituição da República Portuguesa (CRP) pode ler-se que "Portugal é uma República soberana, baseada (...) na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre (...)"
O artigo 2.º volta a falar na "soberania popular" e também "no pluralismo de expressão e organização política democráticas". Este princípio é reforçado no artigo 3.º, que diz que "a soberania reside no povo".
O artigo 9.º, al. c), define como tarefa fundamental do Estado "assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais".
O artigo 10.º, primeiro a falar nos partidos políticos, estabelece, no seu nº 2, que "os partidos políticos concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular".
O artigo 51.º volta a falar dos partidos políticos e o nº1 refere que "a liberdade de associação compreende o direito de constituir ou participar em associações e partidos políticos e de através deles concorrer democraticamente para a formação da vontade popular".

Chegados aqui, conclui-se que o Povo é quem exerce o poder e os partidos políticos apenas são os seus representantes na AR. Todos as normas acima referidas apontam neste sentido.
"Vontade popular" e "soberania popular" são as duas expressões utilizadas para estabelecer o princípio basilar da nossa democracia de que o povo é soberano e quem decide. Ou deveria...
Avançemos então para a organização do poder político.

2. O artigo 108.º diz-nos que "o poder político pertence ao povo", reforçando a mesma ideia.
O artigo 147.º define a Assembleia da República como "a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses".
O artigo 155.º, um dos mais importantes para o presente tema, estabelece, no nº1, que "os Deputados exercem livremente o seu mandato, sendo-lhes garantidas condições adequadas ao eficaz exercício das suas funções, designadamente ao indispensável contacto com os cidadãos eleitores e à sua informação regular."

3. Posto isto, conclui-se que, residindo o poder ao Povo, que é soberano, este é representado pelos deputados na Assembleia da República. Note-se que o povo é representado pelos deputados e não pelos partidos. Um partido ao impor disciplina de voto, está a condicionar a acção dos deputados desse partido, que têm o direito constitucional à liberdade de voto e de exercício de mandato.

Imaginemos um exemplo prático: o deputado X vota a favor de um projecto-lei, quando o partido pelo qual foi eleito e a que pertence ordenou que todos os seus deputados votassem contra, violando, assim, os estatutos desse partido. Se a nível parlamentar e legislativo, não há qualquer repercussão (o voto é obviamente válido), a nível partidário o deputado X sujeita-se à disciplina interna por desrespeito dos estatutos.
Ora, no caso do deputado X ser sancionado, por exemplo, com a expulsão do partido, pode recorer para os tribunais administrativos ou directamente para o Tribunal Constitucional, já que a decisão do partido em expulsá-lo viola (no meu entender) quase todos os princípios que acima elenquei, sendo a decisão inconstitucional e, portanto, inválida e ineficaz.

Concluindo, repito o que aqui escrevi: compreende-se, por ser necessária, a disciplina dentro dos partidos, mas esta nunca pode limitar, seja de que modo for, as liberdades dos deputados, sobretudo a liberdade de voto, pelo que entendo que estas normas dos estatutos dos partidos políticos referentes à chamada "disciplina de voto" são inconstitucionais.

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