terça-feira, 14 de julho de 2009

Leituras

"A justiça é hoje um dos temas que mais preenche o debate político em Portugal. Basta verificar o alinhamento dos telejornais, reparar nos múltiplos artigos de opinião e estar atento ao mundo da blogosfera e dos comentários online, e perceberemos que a discussão sobre a justiça e a sua aplicação se generalizou. Seja por efeito de novos protagonistas, mais mediáticos que sensatos, seja por efeito de um novo paradigma informativo - que não distingue curiosidade de transparência - ou seja mesmo por efeito de um sentimento dominante que transforma opinião em certeza, a verdade é que a velha justiça discreta, senhorial e distante, foi dando lugar a uma justiça lenta, vulgar e discutível. Hoje, não há acto judicial que não seja debatido por qualquer pessoa, em qualquer lugar e para qualquer audiência.
E não nego que até invejo a capacidade de muitos dos meus concidadãos na perspicácia e certeza na avaliação da prova, na inteligência infalível com que compreendem os motivos e na assertividade com que condenam ou absolvem. Os portugueses fazem hoje parte de um grande juri. A Justiça vulgarizou-se.
Querem um exemplo?
Relembremos o recente elogio à exemplar justiça americana pela forma como prendeu e julgou em 6 meses o poderoso Madoff, condenando-o em 150 anos de prisão, sem olhar ao estatuto, sem pestanejar na fortuna. "Em Portugal seriam 150 anos de julgamento para 6 meses de pena suspensa", gracejava-se em todo o lado.
É este o risco da vulgarização.
Porque Madoff defraudou meio mundo e toda a América durante décadas impunemente. Porque nunca foi descoberto e preso, entregou-se. Porque, no julgamento, quase não houve prova, confessou. E porque 150 anos de prisão são gratuitos, quando Madoff não poderá viver nem um quinto desse tempo. Um caso que envergonha a América nunca será prova senão de ineficácia.
Mas este exemplo não diminui a importância do verdadeiro risco de divórcio entre a sociedade civil e o funcionamento dos tribunais. E esse risco não é conjuntural; é sistémico.
Porquê? Porque a função soberana de aplicar a justiça é a única soberania cuja legitimidade não assenta na origem, assenta no resultado. Isto é, ao contrário dos outros órgãos (PR, AR e Governo), cuja legitimidade decorre do voto da sociedade, os Tribunais baseiam a sua legitimidade no resultado da sua acção. Pôr em causa a sua eficácia, é pôr em causa a sua legitimidade.
Por isso, quando se inicia a campanha eleitoral, era bom recordar que se a justiça é séria demais para ser entregue a cada um, também é séria demais para ser resolvida no tribunal da opinião pública. Esperemos que, por isso mesmo, venha a fazer parte da agenda dos consensos e não da agenda das disputas."

(António Ramalho, no Diário Económico)

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