quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O Paradoxo

Ouvi há momentos, no Jornal da Noite da Sic, Magalhães e Silva dizer que o crime de enriquecimento ilícito, defendido e proposto por alguns partidos, é constitucional e que não inverte o ónus da prova. Para o efeito, dá o seguinte exemplo: um indivíduo compra uma enorme casa; o Estado (Finanças, por exemplo) investiga e não descobre fontes de rendimento que permitam tal aquisição; como não descobre como conseguiu o dinheiro para comprar o palacete, acusa-o por Enriquecimento Ilícito. E diz que, se for inocente, o indíviduo pode sempre "mandar parar o baile" (sic) e apresentar, por exemplo, o totoloto ou o euromilhões. E conclui que terá de ser o indivíduo a provar que o rendimento é lícito e que é isto que já acontece!

Terminei com um ponto de exclamação pois considero esta última análise simplesmente desfasada da realidade. Com todo o respeito, tal entendimento só pode vir de alguém que não faz Direito Criminal e desconhece as regras.
Antes de mais, o crime de enriquecimento ilícito obrigará a que seja invertido o ónus da prova. Não pode ser o acusado a provar a inocência, mas sim o acusador a provar a culpabilidade. No exemplo dado pelo ex-candidato a Bastonário da OA, teria SEMPRE que ser o MP a provar que o dinheiro tinha sido obtido de forma ilícita, nomeadamente provando que não poderia ter sido obtido pelo totoloto ou pelo euromilhões. Isto é, o MP tem de excluir, através dos meios probatórios, que a origem do dinheiro é ilícita. Se pudesse ter sido pelo totoloto, o MP teria que investigar essa possibilidade (e acabaria por descobrir que tinha sido pelo jogo e arquivado o processo). Ao não fazê-lo, não se pode inverter o ónus da prova e obrigar o acusado a provar que tinha sido pelo totoloto.
Bem sei que seria mais fácil assim. Aliás, o objectivo da proposta de criação deste novo tipo de crime é precisamente este: facilitar a vida a quem investiga e acusa. Mas ao cedermos a tais tentações estamos a desvirtuar um princípio básico do nosso direito constitucional e penal: o da presunção da inocência.

Já agora, se o dinheiro tivesse sido, por exemplo, obtido pela venda de estupefacientes, não seria o acto já punível a título de tráfico de droga? E - outro exemplo - se tivesse sido por lucros na Bolsa, não declarados às Finanças? Não estaríamos perante um crime fiscal, já consagrado e punível? É que, como referi da primeira vez que se falou neste novo crime, o enriquecimento ilícito mexe com actos já, por si, previstos e puníveis na legislação penal.

Uma última nota: não deixa de ser curioso observar pessoas que criticaram fortemente Guantanamo (um péssimo exemplo de violação dos direitos mais básicos) virem a público defender e propor a criação do crime de enriquecimento ilícito. É, no mínimo, paradoxal...
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Adenda: Rogério Alves, ex-Bastonário da OA, disse há momentos na RTPN que "para o enriquecimento ser ilícito, tem de haver um crime antes do enriquecimento e, como tal, já se pune esse ilícito." Como não se consegue punir o crime, pune-se o resultado desse crime, que é o enriquecimento, seja por tráfico, furto, ou por outra forma qualquer. Rogério Alves até ironizou com o nome da expressão, que se deveria chamar "enriquecimento frustrado"...

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