sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Aventuras negras (3)

"Lá diz o ditado popular: 'zangam-se as comadres, sabem-se as verdades.' Foi isso mesmo que aconteceu nesta história. Era a despedida do presidente do Tribunal da Relação do Porto, que fizera setenta anos e tivera de se aposentar. Tinham-lhe organizado um almoço de homenagem, em Vila Nova de Gaia. Deviam estar mais de cem magistrados. Quando aqueles dois se encontraram, ainda estava toda a gente de pé, nos aperitivos.
- Olá. Dr. Aníbal, como está? -, disse, efusivamente, um dos magistrados, quando se cruzou com o colega, que não via há bastante tempo. O outro apertou-lhe a mão, secamente, sem pronunciar uma palavra. Depois virou-lhe as costas ostensivamente, deu meia volta e afastou-se. O colega ficou tão surpreendido que decidiu ir atrás dele.
'Ouve lá, o que é que eu te fiz para me cumprimentares desta maneira...?' Até parece que me falas por favor...' A resposta veio em forma de pergunta.
'O Sr. Dr. faz parte do Conselho Superior da Magistratura, não faz?'
'Faço...'
'Para mim, todos os membros do Conselho Superior da Magistratura são uns filhos da puta. Estragaram-me uma vida inteira de trabalho!'
Ambos sabiam muito bem do que estavam a falar. No concurso para juíz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, o juíz fora chumbado pelos 'filhos da puta' - como lhes chamara - do Conselho Superior da Magistratura.
'Olha lá, tu sabes que o que estás a dizer é um insulto, não sabes...?! Não só para mim, mas também para todos os membros do Conselho', interpelou o colega.
'O que eu disse está dito.'
'Tu estás é a ser malcriado. Vou ter de comunicar isto ao Conselho!'

Dito e feito. Apanhou dois colegas a jeito e pediu-lhes para serem testemunhas do ocorrido. No dia seguinte, a queixa formal foi entregue, acusando o colega de infringir a dignidade profissional. Deu-se então início a um processo disciplinar. Houve inquirições, testemunhas para cá e para lá, certidões de bom comportamento, atestados de habilitações, enfim, tudo aquilo a que se tem direito nestas coisas. Porém, a questão de fundo mantinha-se - o juíz garantia que fora chumbado sem perceber porquê. Embora não sejam inspeccionados, ocmo sucede com os magistrados de base, os juízes, para ascender a um tribunal superior, são submetidos a um concurso. Era com essa prova que este juíz vociferava.
'Não compreendo, nem me explicam satisfatoriamente, por que motivo, num concurso de mérito, o primeiro classificado é licenciado com dez valores, enquanto eu, apesar de ter dezasseis valores, fui relegado para 11º lugar.'
Por outro lado, acrescentava o juíz, a ezpressão 'filhos da puta' não passara de um desabafo durante uma conversa privada. Mas no Conselho levam tudo muito a peito e, ainda por cima, este juíz era dos 'não-alinhados'. Como ele próprio frisou, 'não tenho ligações políticas, corporativas ou familiares relevantes'. Conclusão: o Dr. Aníbal foi mesmo condenado, com uma pena de advertência. Mais tarde, o Supremo Tribunal de Justiça acabaria por anular esta sanção, mas o problema é que o caldo estava entornado.

Desde aí, começou a haver falatório. O que antigamente só se murmurava nos corredores, saía agora impresso nos jornais, como foi o caso do artigo de opinião de um procurador-geral adjunto. 'Bienalmente, do alto do seu trono instalado na sede do Império, o Conselho Superior da Magistratura, órgão superior da judicatura, lança um repto, em forma de de anúncio, no Diário da República: "Quem quiser ser juíz do Supremo Tribunal de Justiça fica avisado - Concorra no prazo X." Primeiro engulho. Ao exigirem-se "classificações de serviço" e "cargos judiciais", tirando os juízes e os representantes do Ministério Público, praticamente mais ninguém pode concorrer. Elimina-se, assim, a concorrência dos advogados e dos professores de Direito! A seguir, é fácil: envia-se a papelada habitual, desde o certificado de habilitações do liceu até aos "trabalhos científicos". Quem avalia? O Conselho Superior da Magistratura que, se virmos bem, não é nenhum conselho científico. Dois membros são indicados pelo Presidente da República, sete são eleitos pela Assembleia da República e os sete restantes são eleitos entre os juízes.' Por fim, o procurador concluía: 'Os juízes são a única carreira pública onde não existe qualquer forma de avaliação "externa" ao longo do percurso profissional: a carreira diplomática, a carreira hospitalar, as carreiras docentes, todas estão, melhor ou pior, sujeitas a provas. Na carreira de juíz, para se progredir, basta ser juíz.'

Há quem defenda provas públicas, como sucede no mundo académico com as provas de doutoramento. Outros advogam o sistema norte-americano, de nomeação política. Já em Portugal o problema é a opacidade dos critérios de selecção. O mesmo procurador explica porquê. 'O Conselho Superior da Magistratura debruça-se, como se fora ungido por Deus, sobre a "idoneidade" dos requerentes para o cargo. Como e onde vai o Conselho buscar elementos, num concurso curricular, para aquilatar de uma tal "idoneidade"? É o vazio completo, uma norma em branco que escancara as portas por ondeentram os alinhados e são expulsos os que opinam de modo diverso. A última barreira, praticamente intransponível, é a do "bom senso, aprumo moral e imagem na sociedade". Qual a moral, a do Conselho? E a imagem na sociedade, é a das televisões, dos jornais ou a do condomínio?' O desabafo terminava em tom de desalento. 'O sistema curricular é uma farsa, uma vereda escura por onde tem transitado muito incompetente.'
A classificação dos candidatos é feita pelo Conselho Superior da Magistratura, em reunião á porta fechada. Faz-se uma acta, mas a fundamentação é tão vaga e ambígua que o resultado não é uma lotaria, mas parece. Outro juíz, também preterido, explicou numa entrevista como se passam as coisas. 'Não se trata verdadeiramente de um concurso, porque um concurso exige contraditório onde o candidato possa expor, com paixão, os seus motivos. Pelo contrário, neste "concurso" não há qualquer tipo de participação dos concorrentes, a não ser o entregarem muito burocraticamente os documentos que lhes são exigidos pelo regulamento.' Um dia houve uma surpresa. Dentro do envelope, com a candidatura de um juíz, vinha uma curiosa declaração de uma Junta de Freguesia, atestando que o magistrado vivia maritalmente com outro homem. 'Não quis demonstrar qualquer tipo de militância. Fiz apenas uma actualização do meu estado civil. Nada mais', explicou o juíz aos jornais. O Conselho Superior da magistratura ficou petrificado, mas não se atreveu a retirar o documento do processo. O juíz, pelo seu lado, foi claríssimo. 'A nossa vida é algo sobre a qual o Conselho deve interessar-se. Se a minha situação é pública, é bom que o Conselho saiba por mim.' Para além do "atestado de homossexualidade", o juíz também remeteu um documento do Conselho de Nobreza. 'Trata-se de um alvará de registo de armas. É evidente que tem importância nula (para a candidatura). Apenas o juntei ao processo' - esclareceu - 'porque tenho direito a usá-lo.' Não há certeza sobre quais foram, ao certo, os motivos do chumbo deste juíz. As avaliações do Conselho Superior da Magistratura não são segredo de Estado, mas é como se fosse - não têm divulgação pública."


Há algumas semanas atrás, Proença de Carvalho, em artigo de opinião, levantava a questão de não se saber quem eram ou de onde vinham oa magistrados. Pois bem, aqui está a razão. São escolhidos tendo em conta motivos que não são do conhecimento público.

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