sábado, 10 de novembro de 2012

O Bem maior

Ainda andava na escola (no 10º ou 11º ano) quando a minha turma fez uma 'visita de estudo' ao Banco Alimentar (BA). Salvo erro, era para a disciplina de Introdução à Economia. Lá fomos nós de comboio até Alcântara-terra, passando por uma zona, bem perto da linha, repleta de toxicodependentes a injectarem-se ou a snifarem coca. A imagem, para adolescentes de 15 e 16 anos, era chocante. Chegados ao BA, fomos bem recebidos e foi-nos explicado como funcionava o Banco. Mostraram-nos o quadro com a lista das instituições por onde distribuíam os alimentos, o registo das necessidades (quantidades e tipos de alimentos pedidos) e o Banco propriamente dito, com as inúmeras prateleiras com alimentos. Depois, fomos colaborar, juntando alimentos, distribuindo-os por sacos, que posteriormente seriam entregues nas instituições. Fiquei admirado pelo conceito e feliz pelo voluntarismo das pessoas que ali 'trabalhavam'. De tal forna que, passados cerca de dois anos, liguei-lhes e fui lá uma tarde prestar voluntariado. Receber alimentos, distribui-los pelas prateleiras, ou guardá-los em sacos, conforme os pedidos. Nunca mais lá fui prestar voluntariado, mas, juntamente com a minha família, sempre doei alimentos nas campanhas de recolha (essencialmente junto aos hipermercados) que o BA tem feito. Como escrevi em cima, admiro a ideia de um banco que recolhe e redistribui alimentos pelos mais carenciados e o conceito deve ser mantido e protegido enquanto existir fome. E é aqui que entra a questão das declarações recentes da presidente do BA, Isabel Jonet...
 
Antes de mais, as declarações são manifestamente infelizes, pois entendo que tratou a pobreza e a miséria com ligeireza, o que é grave para alguém que conhece (ou deveria conhecer) melhor do que a esmagadora maioria de nós o que significa passar fome. Em segundo lugar, estas declarações seguem-se a outras, também infelizes. Ou seja, não foi um lapso, do momento, daquela frase em particular. Foi, isso sim, a demonstração de um pensamento, de uma maneira de ver o Mundo. Podemos aceitar, respeitar, concordar ou discordar, mas Isabel Jonet revelou, com as recentes declarações, uma maneira característica de olhar para o pobreza e para os mais carenciados. É verdade que se nota uma dicotomia entre gente de esquerda e de direita. Os primeiros são contra este pensamento e os de direita são a favor, pois o raciocínio é igual ao deles: existem classes de pessoas, estatutos, e não somos todos iguais. nem todos temos direito ao ensino, à saúde, à formação superior, aos cargos de topo e de chefia e, como alguém disse no Parlamento, filho de operário, para esta gente, deve ser também operário, não merecendo as mesmas oportunidades que os outros. E eu não concordo, nem posso concordar, com esta linha de pensamento. Todos somos iguais, nascemos iguais e com os mesmos direitos, ao abrigo quer da Lei quer da Convenção Internacional dos Direitos do Homem. Sim, trata-se de um direito humano, o princípio da igualdade. Algo que esta gente não aceita. É, pois, disto que se trata a revolta em torno das tais declarações. Já pensei se o boicote ao BA será a melhor solução, tendo em vista a demissão da Tia Jonet. No Facebook até o defendi quase de imediato. Existem outras instituições (Cáritas, por exemplo) que também recolhem e distribuem alimentos pelos mais carenciados. Ainda há duas semanas, a Abraço esteve junto de algumas lojas de uma conhecida rede de supermercados a recolher alimentos. Quase todas - se não todas - as paróquias recolhem e distribuem alimentos. Mesmo para quem não é católico, é sempre uma solução viável. O problema é que nenhuma delas apresenta o mesmo grau de organização e 'profissionalismo' do BA. Não chegam onde o BA chega. As dimensões delas não são comparáveis com a dimensão nacional que o BA atingiu. Muita gente critica um possível boicote com o argumento, válido e consistente, de que estaremos a prejudicar quem mais precisa. É verdade. Mas não é menos verdade que, ao defendermos este pensamento - que está a ser colocado em prática a todo o vapor pelo actual governo, estaremos, a médio e longo prazo, a colaborar com o aumento da pobreza, da miséria e do número de carenciados. Antes de ajudar quem precisa, prefiro ajudar a reduzir o número de carenciados e não é com esta política e com esta forma de pensar e ver o Mundo que o conseguiremos.
 
Trata-se de um assunto polémico e delicado, mas considero que deveremos debater a pobreza com seriedade e serenidade. Porque, a continuar assim, todos nós poderemos ficar a conhecê-la em breve, incluindo aqueles que se acham naturalmente melhores...

4 comentários:

Graza disse...

Brilhante Ricardo! Muito bom. Vamos arranjar maneira de replicar este texto. Sinto-me compelido a dar parabéns pela forma estruturada como pensa esta questão, mas é errado, não se dá parabéns a ninguém por pensar bem, não é? Substituo por regozijo... :)

Um abraço.

Ricardo Sardo disse...

Obrigado. Trata-se de um tema delicado e controverso, pois as opiniões teem como ponto de partida a nossa maneira de ver o Mundo. E há muita gente que acha natural existir a pobreza. Faz parte, pensam eles. Imaginar um Mundo sem pobreza é algo que não lhes assiste...
Abraço.

Graza disse...

Perfeito, é isso: "...pois as opiniões têm como ponto de partida a nossa forma de veer o Mundo". Um comentário que conclui bem o texto.
Um abraço.

Ricardo Sardo disse...

Algumas leituras de que gostei:

http://defenderoquadrado.blogs.sapo.pt/922831.html

http://blogsinedie.blogspot.pt/2012/11/portugueses-acabaram-os-bifes.html

http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2012/11/depois-de-ter-visto-o-nestum-de.html

http://cibertulia.blogs.sapo.pt/1705956.html

http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/opiniao/magalhaes-e-silva/24-de-abril-de-novo