segunda-feira, 14 de julho de 2008

Jornalismo à portuguesa

Ontem a capa do Correio da Manhã dizia "Lei deixa atiradores à solta".
Mas será que foi mesmo a Lei? Vejamos...

1. A notícia, que dá suporte ao título, diz que "devido à lei aprovada em Setembro do ano passado, os dois jovens que foram detidos na sexta-feira na Quinta da Fonte foram ontem postos em liberdade por falta de flagrante delito."

Como já aqui e aqui escrevi, não é por causa dos novos Código Penal (CP) e Código de Processo Penal (CPP) que ficaram em liberdade.
A comunicação social repete constantemente este erro: repete uma mentira vezes e vezes sem conta, esperando que se transforme em verdade. E fala de leis, como uma biólogo fala de psicologia, sem entenderem nada do assunto, provocando estas "broas" jurídicas.

2. Para um arguido ficar em Prisão Preventiva, não é necessário ser detido em flagrante delito. Diz-nos o nº1 do artigo 202º do CPP que "Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando:
a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos;
b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo, de criminalidade violenta ou altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos (...)

3. Mais à frente, a peça jornalística diz-nos que "Indiciados por posse ilegal de arma e participação em motim, os jovens terão agora de se apresentar duas vezes por semana na esquadra de Loures.
O processo está nas mãos do Ministério Público, que dirigirá a investigação e poderá avançar com procedimento criminal. De acordo com o Código Penal, os dois indivíduos, a quem foram apreendidas as armas e diversas munições, incorrem em penas até dois anos pela participação em motim e até cinco anos no caso de posse de arma proibida
."

É verdade que os dois crimes referidos não possibilitam a prisão preventiva, apesar de um deles (posse de arma proibida) se poder enquadrar na al. b) do 202º do CPP, por poder ser considerado criminalidade violenta.
Mas... será que foram apenas estes dois crimes que foram cometidos?

4. Parece que alguns envolvidos nas trocas de tiros foram para o Hospital, feridos. Então, se houve disparos e feridos, não estaremos perante um (vários até) crime de homicídio sob a forma tentada?
É que, neste caso, as penas máximas são superiores a 5 anos e, portanto, já admitem a prisão preventiva.
Mas, para tal acontecer, o Ministério Público (MP), órgão competente para promover a acção penal, terá que indiciar/acusar os arguidos por homicídio sob a forma tentada e promover a prisão preventiva.
Das duas uma: ou o MP não indiciou os suspeitos por este tipo de crime, ou indiciou e, neste caso, não pediu prisão preventiva ou pediu mas o Juíz de Instrução aplicou 'apenas' a apresentação periódica.


Concluindo, não foi pela Lei que os suspeitos ficaram em liberdade, como o jornal deu a entender.
Este erro, de falarem sobre assuntos que não dominam e sem consultarem quem percebe deles, repete-se diariamente na comunicação social, levando a deturpações da realidade e a que as pessoas fiquem com ideias erradas sobre os procedimentos e sobre a Justiça. E estes 'erros' em nada ajudam a credibilização da Justiça e a confiança no 'sistema'.
É assim o jornalismo à portuguesa...

2 comentários:

. disse...

Boa tarde!
Após ter lido o seu post, resolvi então pedir para que me esclarece-se um duvida.
Segundo citou:

"...o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando:
a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos;
b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo, de criminalidade violenta ou altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos (...)"

Pelo que percebi, segundo a comunicação social os arguidos não ficaram em prisão preventida DEVIDO à lei, e não devido a um ERRO da lei. Ou seja, não ficaram em prisão preventiva simplesmente porque a lei não preve que, dentro destas circunstâncias isso aconteça, o que parece ter sido também o parecer do juiz, ou teria, ele mesmo ter decretado a prisão preventiva. Qual foi, então, o erro da comunicação social?

Ricardo Sardo disse...

Boa noite.
Apresento as minhas desculpas pela tardia publicação e presente resposta, mas estive ausente da blogosfera uma semana.

Se ler com atenção o que escrevi, a crítica que faço é à forma como o jornal (e a comunicação social em geral, no que diz respeito a esta questão) apresenta a 'realidade'. E, como escrevi, esta é bem diferente daquela que é apresentada pelo jornal.
Se ler com atenção, explico que compete ao Ministério Público acusar e não ao Juiz. A este compete - apenas - julgar, decidir. E, em processo penal, não pode 'condenar' em pena mais gravosa do que aquela 'pedida' pelo MP, nem aplicar medida de coacção mais gravosa do que a promovida pelo MP. Se o MP não pede prisão preventiva, mas apenas (por exemplo) apresentações periódicas, o Juiz não pode aplicar prisão preventiva. E, no caso, concreto, não foi pedida pelo MP, nem poderia, pois os dois crimes de que supostamente foram acusados não prevê medida tão gravosa.
Porém, tal como escrevi, poderemos, eventualmente, estar perante um outro tipo de crime (homicidio, sob a forma tentada) e este já prevê a aplicação de prisão preventiva. E se não foram acusados por este tipo de crime é que o MP não considera ter sido praticado no caso concreto (e, como todas as opiniões, é de respeitar).

Já é a terceira vez que defendo que a Lei não está errada neste ponto concreto, apesar de a Comunicação Social repetir que sim. E isto apenas prejudica a verdade e a credibilidade da Justiça. E a comunicação social deveria ser mais séria e responsável.

Cumprimentos.