quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O Estado de má-fé

A actual situação do patrocínio oficioso é, no mínimo, escandaloso. Não sendo do conhecimento público, apesar do enorme debate no seio da classe, merece ser divulgada. Os advogados que prestam patrocínio oficioso (as chamadas 'oficiosas') encontram-se numa situação em que prestam um serviço, de cariz social imprescindível, sem receberem de acordo com a Lei, estando o Estado em reiterada violação. E isto acontece há anos e independentemente do titular da pasta ou da cor partidária de quem lá está.
A advocacia é uma actividade nobre e fundamental num estado de direito democrático. E o patrocínio oficioso existe para garantir que todos tenham acesso à Justiça, mesmo que não tenham condições financeiras para tal. De acordo com o regime em vigor (até há pouco tempo não existia prazo legal para o pagamento dos respectivos honorários), o Instituto de Gestão Financeira do Min. da Justiça - entidade responsável pelo pagamento - está obrigado a pagar até ao final do mês seguinte (relativamente ao acto - julgamento, interrogatório, conclusão do processo, etc). Mas sucede que, à data de hoje (Setembro), o Instituto está em atraso, com todos os advogados inscritos no patrocínio oficioso, nos meses de Abril, Maio, Junho e Julho (o Agosto terá que ser pago até ao final de Setembro). Isto apesar das sucessivas promessas - quebradas - do Ministro da Justiça, que, descaradamente, falta constantemente à verdade.
Vários advogados já interpelaram o Instituto neste sentido e as respostas apontam o mês de Dezembro como data de pagamento. Ora isto é uma vergonha, para um Estado que se quer cumpridor e de boa fé mas age de pura má fé, mentindo e enganando os portugueses. Já nem vou falar dos valores dos honorários (relativamente baixos tendo em conta os valores pagos a tradutores, peritos, etc) nem na dualidade de critérios (as grandes sociedades de advogados avençadas do Estado recebem todos os meses a tempo e horas - e estamos a falar em milhões de euros por mês! -, tal como os tradutores, que também recebem a horas). O que irá suceder, se o problema não for resolvido em definitivo, é que apenas permanecerão no patrocínio oficioso aqueles advogados que necessitam dos trocos das oficiosas como pão para a boca: novatos, com pouca experiência e em início de carreira, ou que se encontram numa situação de carência financeira provocada pelo excessivo número de advogados em exercício e consequente concorrência. Claro que, quem fica a perder é o Zé Povinho, o pobre que não tem dinheiro para pagar as custas judiciais e os honorários do advogado, que lhe vê calhar em sorte um novato quase sem experiência, pois quem exerce o patrocínio oficioso por razões éticas e morais (como é o meu caso), pensa seriamente em abandonar o sistema. Muitos até têm falado numa espécie de 'greve', em que os advogados não prestariam mais serviço oficioso até serem pagos todos os honorários devidos. Mas a medida dificilmente avançará já que a greve seria um mal maior, se bem que já resultou no passado. Pessoalmente, tenho dito que, 'a bem', isto já não se resolve, mas mas custa-me tomar uma decisão tão gravosa e extrema. Mas entre abandonar o patrocínio oficioso (que não me custaria, já que, felizmente, não necessito dele para viver) e fazer greve, prefiro a segunda hipótese, pois prejudicaria menos os cidadãos do que ficarem estes adstritos a colegas com pouca experiência.

Ficámos hoje a saber que o CDS-PP pretende que seja publicado online a lista de credores do Estado. Referiu-se apenas às empresas, mas se fosse alargada a todas as entidades, veríamos lá milhares de advogados. A larga maioria dos advogados.
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Adenda: "As empresas de distribuição vão ser obrigadas a pagar aos fornecedores de produtos alimentares num prazo de trinta dias, sob pena de multa, que pode atingir quase 50 mil euros, segundo um decreto-lei hoje aprovado." O Governo decidiu multar as empresas que não paguem aos fornecedores a horas. E multar-se a si próprio por não pagar aos advogados a horas?

2 comentários:

Graza disse...

Não é tanto o atraso, embora seja dificil de sustentar que um profissional possa passar meses sem receber os honorários correspondentes ao seu trabalho, mas o escândalo que é não o fazer acrescido dos juros devidos ele que muito bem se sabe cobrar se o mesmo advogado se atrasar no pagamento dos seus impostos. O Estado (o nosso Estado) não é uma pessoa de bem. Concordo!

Ricardo Sardo disse...

Para mim, nem me importam os juros. Aliás, sempre defendi que prefiro um sistema de verdadeiro 'pro bono', onde não receberíamos honorários (sendo apenas compensados pelas despesas) do que o actual. É que este sistema é fraudulento, baseia-se na mentira e no engano. Com um verdadeiro 'pro bono', pelo menos as regras seriam claras. E não me importaria, pois muitos fazem oficiosas não por dinheiro mas por motivações éticas e sociais.
Abraço.