Já aqui escrevi sobre o crime de enriquecimento ilícito. Não tenho nada a acrescentar, mas não posso deixar de comentar, especificamente, a petição lançada pelo Correio da Manhã:
1. Em primeiro lugar, causa-me estranheza que um órgão de comunicação social intervenha - ou tente intervir - na acção legislativa. O jornalismo visa informar, transmitir notícias (informação) e factos aos cidadãos, não fabricar informação e factos. Quando a notícia é o próprio jornalismo, algo está mal. Os jornalistas não podem tomar partido, adoptar posição, mostrar opinião. Se é natural que a tenham, já não é aceitável que a transmitam, pois estão a desvirturar a essência do jornalismo e dos seus reais objectivos.
2. O texto da petição padede de vários "pecados", todos eles capitais em Democracia:
i) "adquirir bens cujo valor esteja em manifesta desproporção com o seu rendimento"
Com esta frase, está-se a criminalizar uma mera hipótese, o "fumo" e não o "fogo", a possibilidade de existir um ilícito e não o ilícito em si;
ii) "rendimento declarado para efeitos de liquidação do imposto sobre o rendimento de pessoas singulares"
E o rendimento de pessoas colectivas? É que há pessoas que vivem no luxo, mas os bens estão registados en nome de empresas, algumas em offshore. Assim, de repente, recordo-me de alguns nomes publicados nos media. Esta norma será, pois, inútil e ineficaz.
Mais. E se houver doacções, isentas da obrigação de serem fiscalmente declaradas? Existirá crime, mesmo sendo a proveniência lícita?
iii) "o infractor será isento de pena se for feita prova da proveniência lícita do meio de aquisição dos bens"
Esta estipulação é a mais grave de todas. Temos aqui uma manifesta a inversão do ónus da prova, pois terá que ser o acusado a provar a sua inocência (a proveniência lícita dos bens). Mesmo que lhe tenham sido doados, por exemplo, 250 euros e, com esse montante, tenha comprado um relógio para um familiar, existe crime. Querem norma mais absurda do que esta?
iv) "e de que a omissão da sua comunicação ao Tribunal Constitucional se deveu a negligência"
Afinal, o crime é de enriquecimento ilícito ou enriquecimento lícito? É que esta parte do texto dá claramente a entender que o mero esquecimento de informar o TC constitui crime! Ou seja, estando tudo legal, o simples facto de não comunicar ao TC faz com que incorra numa condenação, mesmo sem aplicação de pena. Deveras impressionante!...
3. No fundo, esta iniciativa tem como objectivo facilitar a condenação de actos suspeitos de corrupção, como aqui se percebe. Repito: suspeitos. Não é preciso existir corrupção, ou tráfico de influências, mas a mera possibilidade de ter acontecido ou de vir a acontecer (como se se tratasse de um pré-crime, qual Tom Cruise). É condenar alguém por um crime que ainda não cometeu ou que poderá vir a cometer. A mera ilusão dá origem a uma condenação. Isto é grave num Estado de Direito e coloca gravemente em risco qualquer Democracia. Ainda ontem ouvimos nas notícias um homem que, 30 anos após ter sido preso, foi libertado graças a testes de ADN que o ilibaram. 30 anos, quando era inocente. É isto que queremos, que alguém seja preso sem a certeza de ser culpado? Sem a certeza, sequer, de ter havido crime? Sem a certeza de existir um bem jurídico violado? É isto que queremos, que facilitem drasticamente as hipóteses de inocentes serem presos? E quando é que isto acabará? Quando forem os próprios que defendem esta medida a serem acusados por algo que não fizeram e forem injustamente presos? E será que aí haverá quem os ouça, quem lhes dê razão, ou será que já estaremos todos habituados ao novo regime e de acordo com a nova regra?
Com isto estaremos a abrir a Caixa de Pandora e, depois de aberta, esta muito dificilmente se fechará. Há quem perceba isto, mas também há quem não tenha a mínima noção do que está a defender, incluindo magistrados e juristas, e isto, sim, é que é grave.
2 comentários:
Amanhã à tarde passe pelo meu blog, onde remeto para o seu post certeiro. Parabéns.
Passarei, claro.
Obrigado.
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