Escutar uma pessoa é invadir-lhe a privacidade, entrar na sua esfera de intimidade. Por causa disto, as escutas (telefónicas) são um meio de obtenção de prova limitado e que exige requisitos claros. E só é admitido quando, pela sua gravidade, o bem jurídico protegido (privacidade) é sobreposto por outro bem jurídico maior.
Voltámos a discutir as escutas telefónicas do processo Apito Dourado, desde que, no fim-de-semana, foram publicadas mais algumas no Youtube. Mais uma vez, voltámos a descobrir juristas em milhões de portugueses.
Para melhor entender este assunto, temos, antes de mais, de analisar uma questão prévia. Se o conteúdo se deve sobrepor à forma. Entendo que não. Não só como jurista, mas, acima de tudo, como cidadão. A partir do momento em que a matéria afasta a forma (jurídica), estaremos a abrir a caixa de Pandora, a permitir tudo, pois os fins justificarão os meios. Foi por causa deste entendimento que algumas das maiores atrocidades da História foram (e são) praticadas, nomeadamente a tortura. E entendo, tal como outros juristas, que estes formalismos que visam proteger direitos básicos acabam por ser, na prática, aspectos também materiais e não meramente formais. Desta forma, tenho de discordar da esmagadora maioria dos benfiquistas que tenhou ouvido e lido (nomeadamente em blogues), que afirmam que o que lhes interessa é o conteúdo das conversas e não se foram obtidas legalmente ou não.
Analisado o ponto prévio, passemos então à questão das escutas. Para facilitar a compreensão de tão delicada questão jurídica, começemos por distinguir a obtenção da divulgação. Entendo que, ilegalmente obtidas (sem autorização do Juíz, por exemplo) e, como tal, sendo nulas, a sua divulgação é manifestamente ilegal. Foi o caso das escutas ao Primeiro-Ministro, no processo Face Oculta, como na altura expliquei.
Caso diferente é quando as escutas são obtidas legalmente, mas divulgadas. Se quanto à obtenção nada há a dizer, pois foi legítima e de acordo com o Código de Processo Penal (CPP), já a divulgação levanta uma enorme dúvida. O CPP impede a divulgação quando os intervenientes nas conversas escutadas não autorizem. E é esta proibição que pode esbarrar no direito à informação. Estamos, pois, perante um conflito de interesses, uma colisão de direitos, de bens jurídicos a proteger. Por um lado, temos o direito à reserva da intimidade e à privacidade e, por outro, temos o direito à informação. Ambos os direitos estão protegidos, quer pela Constituição quer pela Carta dos Direitos do Homem. E sucede que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem defendido que, nestes casos, o direito à informação prevalece sobre a privacidade, sobretudo quando os envolvidos são figuras públicas. Ou seja, a norma do CPP que proíbe a divulgação pode ser considerada inconstitucional e/ou contrária à Convenção dos Direitos do Homem, atendendo à Jurisprudência do TEDH. Convém salientar que, neste ponto, existe uma enorme divisão entre juristas, pois há quem entenda que deve prevalecer o direito à privacidade e quem defenda que o direito à informação é um bem maior. Esta matéria está, pois, longe de gerar consenso e não é de fácil análise, como aqui expliquei em Janeiro, precisamente sobre as escutas do Apito Dourado. Apesar de tudo, considero que, apesar de manter bastantes reservas, inclino-me para a posição daqueles que defendem que o direito à informação se sobrepôe à reserva da intimidade.
Aproveito, ainda, para criticar aqui a postura do apresentador do programa da RTPN "Trio D'ataque", o jornalista Hugo Gilberto, quando, na passada terça-feira, afirmou "as escutas não são permitidas" (por volta do minuto 13). Em primeiro lugar, um jornalista não pode omitir opiniões. Ao pronunciar-se sobre a legalidade das escutas, está a violar as obrigações deontológicas de rigor, isenção e de se cingir aos factos. E, mesmo que fosse admissível opinar, pergunta-se: com que conhecimentos jurídicos é que se pronuncia, de forma tão clara e peremptória, sobre assunto tão complexo e técnico? Eu bem sei que, naquela casa, existe uma enorme motivação para seguir as pegadas do antigo jornalista Rui Cerqueira, que, depois de um trabalho jornalístico extraordinário a favor do FC Porto, foi premiado com um cargo bem remunerado no clube do seu coração (chegando, até, a ser protagonista de lamentáveis episódios), mas há limites. E é altura de exigir rigor, isenção e imparcialidade. E foi por isto que apresentei uma reclamação da postura do jornalista Hugo Gilberto ao Provedor do Telespectador da RTP, ainda durante a exibição do programa, não tendo, até esta hora, obtido resposta.
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